quarta-feira, 24 de junho de 2009

Na menopausa de um amor

Vim de ver o mar. Estava agreste a brisa, deixou-me triste. E já lá vão quarenta anos. Quatro décadas desde que partiste. Sim, sentei-me na barreira. Que triste sem ti.
Sabes que querem construir um molhe novo? Não eu não vou deixar, tenho um plano. Não te posso contar, ias achar uma loucura. Posso adiantar que implica aquela rocha em que te sentavas, não, não é essa, a outra, onde o teu pai te sentava enquanto pescava. Não acredito, como podes pensar em outra rocha, que não aquela em que fizemos tantas coisas? Bem, no dia em que começarem as obras, encaixo-me bem no teu sítio, continuo a achar que deixas-te impressas as tuas pernas naquela rocha... encaixo-me bem nela, visto o teu oleado e muno-me da tua querida cana de pesca e ao verem tal imagem, vão-me pensar um espectro de ti, vão fugir assombrados, vão pensar que aquela rocha, aquele molhe e aquela praia estão assombrados. Com tanta crendice que por aqui mora, ninguém terá coragem de continuar as obras. Com sorte, e para agradar aos mortos, ainda erguem uma estátua em tua homenagem. É loucura não é?
O que foi querido? Que foi que eu disse? Não, não estás morto em mim, sabes que jamais estarás meu jacinto-jasmim-camomilo, como poderias estar morto, se fazemos amor todos os dias? Se estivesses morto com quem estaria agora a conversar? Um dia destes vou ter contigo, achas que posso levar na bagagem o enxoval que tenho feito para os nossos meninos? Espero que sim, são roupinhas leves e frescas, com o calor que faz por aí...
Vejo a nossa quinta. Que raio nunca mais está pronta, disseste para esperar pela tua carta, com a passagem e a nossa nova morada, e nada, nunca mais chega. Bem sei como és picuinhas, estás a construir um castelo não é? Não é preciso nada dessas coisas, só nos quero aos dois, juntos, até pode ser numa daquelas cabanas que vi nas fotos. Pode?
Vou fazer as minhas malas, deixaste cá tantas coisas, levo-te tudo, prometo!
Um beijo salgado da tua orquidea-rosa-silvestre, que espera com fome a tua carta. Já sei que as telhas demoram a chegar até onde estás, não, não quero piscina... só quero ir para ao pé de ti.
Tenho um segredo, vou-te contar... sabes que há dois meses que não me vem o período, sabes o que isso significa meu jacinto-jasmim-camomilo?

4 comentários:

  1. um dos meus preferidos, querida! mesmo bem narrada e "encaixadinha". sério, bate mesmo certo e acelera o coração! gosto que gosto... as marcas na rocha, as flores, o "vim de ver o mar" e o "para agradar os mortos" e o plano... adoro os teus "masterplans" e as tuas leituras das coisas e até do mundo... nunca te tinha dito? :)

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  2. Obrigada comadrecita! Tive prazer a escrevê-lo **

    Saudad

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  3. Intrigado! Não sei o enquadramento nem que horizontes tocas. Sei, isso sim, que está um texto intenso, tão cheio de de imagens.
    Mais uma vez tenho que dizer que adorei.
    Parabens
    Ricardo

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  4. A projecção da Autora para um futuro longínquo, lembrando o aconchego do fóssil do seu amor na pedra, é , na minha leitura,figura imaginativa para dizer que o tempito que entretanto passou desde que ele partiu parece imenso, ou que um banal desentendimento cria na esposa enamorada um medo de separações dolorosas. Gostei dafigura estilística.Beijos-Ercilia

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